quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Ismael morreu de verdade.

Faz muitos anos que Ismael desapareceu da face da terra. Durante toda a sua vida carregou um cruel destino que estava travado nele desde a sua nascença. Filho de um casal de assassinos, nasceu num chuvoso dia numa casa de banho de uma garagem de autocarros, apenas três dias depois da morte do seu pai por overdose de heroína.
Como se não bastasse, Ismael, pobre e mal fadado, nasceu com uma maldição terrível que o iria acompanhar em todos os sofridos dias da sua vida.
Quando ainda estava no ventre de sua mãe, Ismael participou indirectamente e inocentemente em pequenos delitos praticados pela sua progenitora. Esta aproveitava-se da sua fragilizada imagem para pedir auxílio às pessoas das regiões por onde passavam. A pobre mulher convencia, através das suas mentiras, as pessoas a darem-lhes um local para dormirem e, sem que estas se apercebessem, durante a noite todas as coisas de valor desapareciam das casas tal como a “frágil” mulher grávida.
Durante dois meses limparam um conjunto de casas um pouco por todo o lado, inclusive numa pequena casa onde morava uma senhora idosa que ao ver os bens de uma vida serem roubados, rogou que aquela mulher e o seu marido sofressem com todos os males do mundo, que passassem fome, que caíssem num poço sem fundo e que acabassem por desaparecer da face da terra.
A única verdade que a velha lesada sabia é que aquela mulher transportava um ser dentro dela e que esse não deveria pagar pelas mentiras dos pais. Então criou um feitiço em que, a partir do seu nascimento, aquela pessoa não conseguiria mentir em situação alguma da sua vida. A mulher acreditava devotamente que a verdade absoluta e permanente iria fazer daquela criança um ser com um destino melhor que o dos seus país e que o poderia guiar para um caminho de felicidade.
Ismael nasceu e cedo a sua mãe morreu esquartejada num pequeno quarto de um albergue. Com apenas dois anos ficou órfão e foi parar a um lar de rapazes. Quando começou a falar as pessoas à sua volta afastavam-se dele, pois este conseguia fazer qualquer um sentir-se mal.
Ao longo dos anos, Ismael assistiu e foi vitima de abusos dentro do lar que o recebeu e quando um dia o director o questionou sobre tudo o que se passava naquele lugar, o pobre rapaz contou tudo com todas as palavras que sabia. Imediatamente foi vítima de agressões que o obrigaram a fugir para longe daquele lugar. Durante anos e anos a pobre criança caminhou pelas ruas do mundo pedindo esmolas. Ouvia e via o que de pior há no mundo e sofria por não poder mentir, nem sequer a ele próprio.
O confronto era inevitável e foram incontáveis as vezes em que o jovem era questionado pelas diversas razões inerentes à vida. Devido à sua incapacidade de falsear acontecimentos e vivencias, Ismael era constantemente vítima de agressões que o deixavam às portas da morte. A sua juventude foi sempre assim, passada entre as ruas e as alas de hospitais onde curava as feridas das verdades. Quando entrou na fase adulta, Ismael foi colocado numa ala psiquiátrica de um hospital onde lhe foi diagnosticado um estado de loucura incurável. Para qualquer médico ninguém conseguia ser tão verdadeiro como Ismael era. Tanta verdade só podia ser mentira.
Ao fim de uns tempos um silêncio instalou-se dentro dele. A sua boca não abria mais para falar coisa alguma. Ele encontrara a paz no silêncio.
Continuou a sua vida no hospital psiquiátrico e continuou a ouvir e a ver todo o tipo de coisas. Ao fim de um certo tempo, também os seus olhos se fecharam para esconder a realidade do mundo.
Um dia, e cansado daquilo tudo, Ismael conseguiu fugir e caminhou durante dias sem parar até um vale verde. Nesse vale existia uma pequena macieira a crescer o que causava uma estranha sensação de prazer naquela pessoa que viveu toda uma vida a sofrer. Serenamente ele abriu um buraco junto à pequena árvore e durante dias falou tudo o que já tinha vivido para aquele buraco. O sol levantava-se e punha-se e Ismael lamuriava toda a sua vida àquele pequeno buraco. As lágrimas caíam lá para dentro ao mesmo ritmo que as palavras. No fim ele sentiu paz… pela primeira vez na sua vida este pobre coitado sentiu paz, e essa paz deu-lhe força.
Levantou-se, tapou o buraco e caminhou até à cidade mais próxima. Quando lá chegou sentia o seu coração a bater, o sangue corria-lhe pelas veias e ele não se importava mais de ser como era. Subiu ao ponto mais alto do centro da povoação e gritou todas as verdades do mundo. Em pouco tempo fez parar toda a cidade e pôs toda a gente a escutá-lo enquanto da sua boca saíam os males do mundo. As pessoas começaram a chorar e rapidamente o foram buscar, desejando que ele se calasse. Elas não aguentavam ouvir mais e então juntaram-se os idosos aos jovens, os homens às mulheres e bateram-lhe até que a sua voz fosse quase muda e o seu coração desejasse não bater mais. Houve ainda tempo para se ouvir um sussurro baixinho proferido assim: "É fácil falar claramente quando não se vai dizer toda a verdade."


1 comentário:

Maria disse...

Gramei este texto Terá vindo da imaginação? Tendo sido ou não, conduz-nos ao teatro da vida, "puxando um cigarro" apenas para na esfumaça não vermos decididamente os vários "Ismaeles".

Rotular, categorizar será o caminho de sempre, para enclausurar e "poupar" o pll a reflectir e quicá : agir

De facto gramei "Ismael morreu de verdade" :-)